sábado, 26 de junho de 2010

Sobre o suicídio

A arma em sua mão quente parece fria. O mundo todo tremia ou sera só seu corpo?

PONTO

A arma em sua mão fria estava quente. Se seu corpo não mais tremia, só poderia ser o mundo.
As pessoas nas ruas são fantasmas. Suas sombras movem-se por elas e seus cachorrinhos fazem barulho. A carrocinha de sorvete passeia, deixando para trás cores que os senhores e as mocinhas da limpeza varrem da calçada para os bueiros, por onde escorrem virando cinza e preto. As vitrines mostram as formas e sabores que atraem meninas e mulheres-criança de maneira tão vistosa que as obrigam a entrar.
As vozes nos fones de ouvido são doces, envolventes, transloucadas. Ouvem-as ouvidos esquizofrênicos, que balançam as cabeças e sacodem os corpos, fazendo rebolar os quadris. Os fantasmas dançam, dançam, dançam.
Ao entrar nos prédios, perdem a transparênica e ganham corpo. Seus cachorros se calam, menos nas salas de aula. Nada pode fazer silêncio enquanto um professor fala, somente as engrenagens enferrujadas do cérebro. Nada se pode aprender que não com os fantasmas das árvores e do asfalto. Talvez algo com as fadas.
Sentado na praça do outro lado da cidade ele vê fantasmas, flores, dores e, mesmo que procure, nunca encontra ardores. Só ouve cachorros, balidos, e é quase mudo. Talvez seus lábios já tenham se colado de tanto silêncio. Ele, porém, vê cores, não só as do sorveteiro. Aprendeu a transformar o transparente ectoplasma em vivas cores, talvez até sabores, se pudesse abrir a boca. Mas não podia. Não falava.
E quem não fala não é importante. É preciso se co-mu-ni-car. Com palavras e não basta que sejam escritas. É preciso pronunciar. Mesmo que não seja importante. Quem fala muito conta, mesmo que fale mal, mesmo que fale feio, mesmo que não fale sério.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Queria ser você

Olhou os olhos, desceu pelo nariz, pousou na boca, vermelha, rosa? Contornou o queixo, subiu pelo cabelos ruivos, meio loiros cheio de cachos. Caminhou pela testa, pela orelha esquerda. O que estava procurando, encontrando, onde estava se perdendo? Fechou os olhos para ouvir, só ouvir. Pelos lábios vermelho-rosas vinham a história do mundo, de que mundo? Talvez fosse só como foi o dia, uma história engraçada. Como aqueles lábios transformavam tudo em algo fantástico? Ou talvez fossem os olhos, verde-azuis que diziam tudo. Mas tinha certeza de que tinha algo com as palavras, o acento tão forte e os "s"s arrastados ao limite. Que fala preguiçosa a desses lábios! Mas os olhos davam movimentos, força emoção. Os olhos eram tudo. Você está prestando atenção? Sim.
Em tudo, tudo. Nos dedos brancos que enrolam uma mecha loira-ruiva e que depois a deixa cair como uma mola. O dedo, acompanhado da mão fina, volta para o bolso da calça jeans, que guarda as coxas, brancas, transparentes. Subiu devagar pela barriga, um território inexplorado. O corpo todo era segredo que não para os olhos. Já vira tudo, tudo, tudo. Mas precisava mais. Precisava tocar, entender. Queria entender as curvas delicadas e as pintas que formavam constelações. Podia fazer um mapa celeste daquelas costas, que terminavam em uma bunda perfeita, redonda, ou não? Talvez estivesse ficando cego, míope, estrábico. O que estava olhando? Os olhos verde-azuis, o nariz arrebitado, as sardas pequenas, delicadas, os lábios vermelho-rosas.
E as palavras. Agora aqueles lábios cantavam. E, amor, que voz era aquela. Tinha que estar apaixonado, como tudo podia estar tão perfeito? Os olhos verde-azuis se fecharam e não havia mais o que olhar, então também fechou os olhos. Agora só queria ouvir. Era uma música boba, tão boba, falava de amor. Mas, amor, o que é amar? Pegue o violão. Pegou. E tocou para que os lábios vermelho-rosas cantassem e a voz enchesse o mundo. Então sentiu os dedos quentes, a mão, sobre o braço. Podia sentir e nada mais importava. Só a voz. E os lábios vermelho-rosas. Desviou os olhos do violão. E os olhos verde-azuis. E o nariz e as sardas. E o cabelo loiro-ruivo, os cachos. Só aquilo. E a música, que música? Aquela que falava de amor.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

porque eu amo criar começos 2

Escrevo para que, de alguma forma, fique para sempre o nosso amor. Digo agora que eu te amo e, mais ainda, que sempre te amei. Peço perdão por não ter deixado isso claro o suficiente quando eu pude. Peço perdão por ter deixado isso ir embora
Tudo começou com uma brincadeira. Você disse que casaria comigo. Que eu seria o pai per-fei-to pros seus filhos. Disse que eu seria um bom marido, daqueles que lava a louça e passa o dia com as crianças. E eu seria. Sei que seria. Se não tivesse deixado tudo dar errado. Se eu não tivesse feito tudo errado. Como eu queria ter visto o que você viu, sentido o que você sentiu. Sofrido o que você sofreu. Só para aumentar minha dor. Só para me fazer entender o quão errado eu fui. E sou.
Talvez o melhor seja começar naquele verão, agora longícuo. Nós tínhamos 11 anos, talvez 10. Eu estava sentado na varanda e você subia na jabuticabeira no jardim. Seus cabelos ruivos esvoaçavam com o vento. Você parecia muito delicada, usando um macacão jeans e uma blusa rosa, repleta de flores. E um sorriso no rosto. Sei que senti meu rosto aquecendo pelo simples fato de você olhar pra mim e acenar.
Um galho escoregadio, ou mesmo um descuido seu, a fez desequilibrar e acabar por cair. A pouca altura e a grama fofa te deixaram apenas um corte mais ou menos profundo no joelho. Corri até você e te vi segurando a perna, com lágrimas nos olhos.
- Dói muito?
Você fez que sim com a cabeça. Meu coração apertava, eu achando que era uma dor inacreditável. Tirei minha camisa e amarrei no seu joelho do melhor jeito que pude. Quase me desesperei ao ver o azul claro se tingir, aos poucos, de vermelho. Juntando minhas poucas forças, te pus nas costas como uma mochila e te levei até a cozinha, onde minha mãe e a sua preparavam um bolo, ou algo assim. A preocupação no rosto da Helena ao nos ver só me deixou mais aflito. Comecei a explicar o que acontecia tão rapidamente que ela mal conseguiu entender. Pôs-te sentada sobre a mesa e começou a cuidar do corte em seu joelho, enquanto minha mãe verificava se estava tudo bem comigo. Mas não podia estar enquanto eu não tivesse certeza absoluta que você estava bem

porque eu amo criar começos

Chegou aos dezesseis anos sem ainda saber o que era "querer crescer". Fingia entender aquele mundo adolescente de garotas, estudos, baladas e paixonites, mas, no fundo, ainda era bem criança. Não que chegasse em casa tomasse um todynho e fosse brincar com seu Max Stell. Quer dizer, ele ainda adorava o achocolatado e nunca conseguiu se desfazer de seus bonecos, mas não queria dizer que ele desse muita atenção a eles. Para quem não o conhecia direito, era um garoto normal, que ia tinha alguns problemas com matemática, mas entendia tudo de história, estava sempre com um livro nas mãos e tinha olhos azuis encantadores. E não havia ninguém que o conhecia direito. Sua mãe estava sempre preocupada com sua falta de amigos, o tempo que ele sempre passava sozinho, perdido num mundo de fantasias. Seu pai era mais tranquilo. Dizia que era tudo uma fase, sorria, desarumava os cabelos castanhos do filho e lhe perguntava se iria querer sobremesa. A mãe era uma dessas mulheres nervosas que sofrera na adolescência e tinha medo por tudo. Já o pai não. Ele fizera parte do movimento hippie, tocara violão descalço na rua e fora "contra o sistema". Quando cresceu, tornou-se editor de uma dessas revistas sobre cultura e música e passava os domingos ouvindo os novos cd's que eram lançados, lendo os livros que ainda não haviam sido publicados ou indo à estreias de peças e filmes. Um desses humens que as pessoas gostam de chamar de "culto" e convidar para jantar.
Fechou os olhos para sentir a leve brisa brincar com seus curtos cabelos castanhos. Como não se pode deixar de esperar de quem anda sem olhar para frente, tropeçou numa peça solta no calçamento e quase caiu, esparramado, na rua.