quarta-feira, 27 de maio de 2009

a cura - parte 1

Carlos desligou o computador e massageou levemente as têmporas, o cigarro pendia-lhe dos lábios semi-abertos. Levantou-se e andou, não, se arrastou até o quarto. Estava cansado, de verdade. Sentou-se na cama e firmou o cigarro, tragando-o longamente. Maldito vício, pensou antes de soltar a fumaça bem devagar. Apagou-o no cinzeiro, descalçou os chinelos e deitou-se. Havia sido um dia difícil, como todos. Odiava o maldito emprego. Ganhava um bom dinheiro? Sim, e daí? As únicas coisas que fazia eram: trabalhar, trabalhar e trabalhar. E tinha apenas 27 anos! Imaginou como seria aos 40: mais um daqueles empresários gordos e estressados, que acabavam por morrer do coração. Mas o dia não fora simplesmente ruim. Fora péssimo. Além de todo o trabalho ainda tinha aquela menina. Riu. Menina... A garota deveria ter apenas dois ou três anos a menos que ele, mas ele se sentia muito mais velho. Ela era uma novata, ele odiava treinar novatos. Um dia passaria essa função para alguém. Ainda por cima a fala arrastada e o sotaque baiano da garota o irritavam profundamente. Levantou-se. Sabia que não conseguiria dormir. Foi até o bar que ficava na sala e tomou um copo de vodka. Como aquilo era bom! Tomou mais um gole e voltou para a cama. Não que fosse conseguir dormir, mas era melhor ficar deitado.

Rosa jogou a bolsa em cima do sofá. Não estava bem cansada, era mais para frustrada. Por que seu chefe havia sido tão rude? Afinal, ela sabia do assunto e estava disposta a aprender tudo o que precisava para o trabalho. E ele a tratou como o ser mais burro do mundo! Entrou debaixo do chuveiro. Quem sabe um bom banho não faria bem para ela? Deixou a água escorrer pelo seu corpo sem pensar em nada. Não era hora de pensar. Era hora de sentir. Quando finalmente saiu do boxe o pequeno espelho acima da pia estava embaçado pelo vapor. Com o dedo, desenhou um pequeno coração e saiu. Vestiu uma camisola e foi até a cozinha.

Não esperou muito para estar no quarto, deitada na cama e trocando os canais da televisão. Sabia que não iria dormir, mas ao menos tentaria

Não passava muito das seis e o sol já despontava no céu quando Carlos levantou. Era uma sexta-feira de primavera e o dia estava lindo. Levantou-se e se arrumou: iria caminhar na praia antes de trabalhar. Aquele era um ato incomum, mas mesmo assim estava decidido. O Leblon acordava enquanto ele caminhava sobre as pedras pretas e brancas do calçadão. Decidiu tentar não pisar nas pretas. Era uma brincadeira infantil, sabia, mas, por algum estranho motivo, ele não se importou. Deixou o homem sério para ser usado quando estivesse de terno e gravata. Várias pessoas caminhavam ou corriam pela ciclovia. A maioria, pensou ele, executivos ocupadíssimos e suas mulheres totalmente desocupadas buscando manter o físico para parecerem melhores. Ele só não sabia sob os olhos de quem. Continuou prestando atenção nas pedras sob seus pés.

Rosa amarrou o tênis e saiu. Planejava ir até o posto 12, voltar, tomar banho e ir trabalhar. Caminhava lentamente. Afinal, para que pressa? Observava a praia e as pessoas enquanto passava. Uma estranha nostalgia a atingiu fazendo-a pensar. Por que não havia ficado em Salvador? Será que estaria sendo mais fácil? Depois de um tempo decidiu que não. Seria muito mais difícil esquecer se continuasse lá. Seus pensamentos voavam longe e ela já não prestava atenção aonde ia. Só parou ao trombar fortemente em alguém.

Carlos caiu de bunda no chão ao bater em alguém. Quando olhou para frente, viu apenas um par de pernas mulatas. Belas pernas, pensou antes de resmungar:

- Não olha para onde anda?

- Desculpe, meu rei. Disse uma voz com um forte sotaque baiano.

Uma mão se estendeu, mas ele a dispensou e levantou-se sozinho.

Qual não foi a surpresa de Rosa ao ver ali, na sua frente, o homem que tanto a havia tratado mal toda aquela semana. Se amaldiçoou por ter parado. Esperou alguma reação do patrão. Como nada via, virou-se e começou a andar. Pouco depois, Carlos a alcançou.

Ele não sabia o que estava fazendo. Talvez fosse o clima de primavera, talvez o tombo houvesse afetado seu cérebro, ou talvez ele houvesse ficado encantado com a mulata metida naquela roupa de ginástica, mas foi atrás dela.

- Você mora por aqui? Perguntou ele despreocupado.

- Não, em Copacabana, mas costumo vir até aqui. Eu gosto da caminhada.

- É um bom pedaço. Bem, eu vou indo, ainda há algumas coisas para fazer antes de ir para o escritório.

Sem dizer mais nada, virou-se e segui na direção oposta. Rosa continuou a andar, espantada. O homem que a havia tratado tão mal nos últimos dias fora muito simpático sem nenhum motivo aparente.

Não passava muito das 21h, mas, talvez por conta da frente fria que chegara naquela madrugada, as ruas do Leblon estavam quase vazias. Apertava fortemente o volante de seu Honda Civic. Queria chegar logo. Dobrou uma esquina. Parou o carro e saiu, dando a chave ao manobrista.

- Quantas pessoas?

Fez um sinal com a mão indicando que seria apenas uma. Foi conduzido até uma mesa no meio do restaurante. Era sexta-feira. Não conseguiria ficar em casa. Pra começar, pediu uma taça de um bom vinho. Só não queria te de voltar.

Rosa estava sentada na bancada da cozinha, esperando a lasanha ficar pronta, com um álbum de fotos apoiado no colo. Eram fotos de não muito tempo atrás. Ela, seus pais e Pedro, em frente à casa que há pouco haviam comprado. Não era muito grande, mas o suficiente para os dois casais. As memórias a invadiram como um furacão. A voz do negro em seu ouvido...

- Minha Rainha!

A simples lembrança da voz doce e aveludada a fez arrepiar-se. Sentia falta de seu nego. Uma corrente de ar frio passou pela cozinha e ela se encolheu. O microondas apitou indicando que a comida estava pronta. Desceu da bancada e pôs-se a desenfornar a lasanha, mas seus pensamentos ainda estavam a quilômetros dali. Uma outra lembrança veio à sua mente. Ela devia ter uns 5 anos. Pequena o suficiente para se sentar nos ombros do pai. A pequena família passeava pela parte alta de Salvador. Decidiram pegar o elevador Lacerda. Nunca se esqueceria do que viram seus olhos imaginativos de criança. Cercada de turistas e moradores, ela se sentiu uma rainha descendo aos seus súditos. Lembrou-se da primeira vez que comeu acarajé. A boca ardendo e dormente por causa da pimenta, mas adorou o gosto. Enquanto comia a lasanha sem graça, se imaginou deliciando-se com o acarajé de sua mãe. Queria tudo aquilo de volta.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

a cura - parte 2

A caminhada pela praia de manhã havia se tornado um hábito para Carlos e mesmo inconscientemente a buscava com os olhos. O corpo esbelto e mulato que ele adorava, apesar de a dona não saber. Quando Carlos acordou naquela segunda, com a cabeça estourando de dor, já eram mais de oito horas. Mas ao contrário do normal, a ressaca não era um mau sinal. Era sinal de uma noite dormida. Estava totalmente bêbado quando se deitara, mas era tudo o que precisava. Banhou-se, tomou café rapidamente e saiu. Apesar das grandes e escuras nuvens no horizonte o céu estava bastante azul. O trânsito no centro já estava impraticável. Acendeu um cigarro e apoiou o braço na janela aberta, tomando cuidado de deixar a pasta bem escondida, já havia sido assaltado antes, e os 4 mil reais de um laptop novo ele preferia guardar.

Rosa desceu do ônibus e começou a caminhar. Eram mais 15 minutos a pé até o escritório, ou muito tempo de ônibus. Entrou na profusão de vias e ruelas do centro, observando o ambiente. Passava por ali todo dia, mas nuca deixava de olhar. E nunca deixava de sentir uma estranha vontade de largar tudo e voltar para a simplicidade de sua vida em Salvador. Mas sabia que não podia. Não conseguiria agüentar.

A noite chegou e junto com ela uma forte chuva. Rosa se perguntou por que não havia trazido a sombrinha. Foi quando sentiu uma mão em seu ombro.

- Aceita uma carona?

Carlos não sabia o que estava fazendo, mas mesmo assim não pôde resistir. Ela parecia tão solitária, indefesa. Seu instinto de príncipe encantado teve que agir. E a surpresa: ela aceitou prontamente. Dirigiram-se para a garagem do edifício e, em minutos, o carro emergia para as ruas cheias do centro. Os pingos grossos açoitavam a lataria. A chuva agravava o trânsito da hora do rush. Ele ligou o rádio. A Lagoa, em direção ao corte do Cantagalo estava parada, o aterro também.

- Se importa se a gente der a volta pela Borges de Medeiros? Perguntou ele.

Ela fez que não com a cabeça. Continuaram em silêncio por um bom tempo, ouvindo apenas o rádio e a chuva lá fora. Novamente, foi Carlos quem falou primeiro:

- Minha rua é a próxima. Não quer ficar lá em casa até passar a chuva, e o engarrafamento?

Rosa teve que pensar um pouco antes de responder. Ela não faria nada em casa, e levá-la só o faria perder mais tempo no trânsito. Respondeu um “sim” tímido. Carlos fez a curva, logo parou na garagem de um luxuoso prédio. Não demorou minuto para Carlos destrancar a porta e os dois entraram numa sala bem decorada ele ofereceu um lugar a ela e uma taça de vinho, que Rosa aceitou de bom grado. Logo depois ele desapareceu no corredor, voltando pouco depois sem gravata e paletó e a camisa desleixadamente para fora da calça. Ele se serviu de um copo de uísque e sentou-se na poltrona ao lado dela. Conversaram então enquanto a chuva batia fortemente na janela. Quando a chuva finalmente aliviou, estavam entretidos e altos demais para notar.

- E como você, uma moça tão bonita, não tem namorado? – Perguntou Carlos.

Uma sombra triste passou pelos olhos da menina.

- Meu noivo, assim como meus pais – respondeu ela, vagarosamente – Eles... Eles morreram num acidente de carro que levavam nossas malas da casa antiga para a que havíamos acabado de comprar. Apesar de eu estar no carro, consegui sair antes de tudo explodir. Desde então não durmo.

Carlos pôs sua mão sobre a mão da mulata.

- Entendo como se sente... Minha esposa morreu, há dois anos, vítima de uma bala perdida. O culpado nunca foi encontrado, mas tudo aconteceu por causa de uma troca de tiros entre a polícia e traficantes. Eu também não consigo mais dormir...

Rosa segurou a mão de Carlos. Nunca achou que alguém estaria na mesma condição que ela. Seus olhos castanhos estavam cheios de lágrimas. Olhou para o chefe, olhos nos olhos. Antes que pudesse perceber, ele se aproximava lentamente e, num impulso, a beijava.

Rosa se surpreendeu, mas não o repeliu. Pelo contrário, correspondeu. Sentiu um arrepio. Não era o beijo luxurioso que imaginava. Era doce, como se quisesse confortá-la. Sem se separar os dois foram caindo vagarosamente. Acabaram deitados lado a lado no chão e ,antes de adormecer, perceberam. Encontraram o remédio para suas noites em claro. Acharam sua cura.